…você nem sempre saberá se é verde ou roxo, nem sempre saberá se é azul, porque no próximo momento o brilho em constante mudança assumiu uma tonalidade rosa ou cinza, penso”, paro de escrever para ler em voz alta, e leio, “‘Mort-vivant’, quando criança, esse foi um dos apelidos que me colocaram, ‘pourquoi ne retournes-tu pas au cimetière, sur ta tombe?’, perguntavam e riam, entregues à mercê do vento, penso, o poste de iluminação encontrou brechas para lançar dois pontos luminosos no patamar da escada de acesso ao rio, à medida que o vento, vez ou outra, sacudia a copa das árvores, assim, tão instantâneo quanto a velocidade da luz, penso, a besta furiosa projetou-se diante de mim com seu par de olhos incandescentes brilhando na escuridão, pronta para a investida mortal, penso, com receio de queimar o dedo no cigarro, o que provavelmente seria o último trago que me ofereceram, eu recusei e, olhando para a água cristalina, vi o reflexo prateado da lua tomar a forma de um cavaleiro medieval, empunhando um machado atravessava o rio com cautela, pulando de pedra em pedra, penso, apertei os olhos e ao voltar a abri-los, a figura sumira ou alcançou a outra margem, desaparecendo na mata, penso, talvez você já tenha visto por aí estatuetas de gnomos em fofos jardins, mas quando lá voltei alguns dias depois, não havia nada que pudesse explicar o que vi quando retornávamos da escadaria, penso, pareciam silhuetas de estatuetas que a cada segundo maiores ficavam, penso, não importava o quão perto eu ficasse do alheio jardim, permaneciam imersas na escuridão e quando cheguei mais perto, penso, percebi serem freiras com vestes brancas e lilás fosco, todas permaneciam imóveis em uma postura de respeito solene, com a cabeça abaixada, penso, cada detalhe era visível, desde os traços delicados de seus rostos até o véu branco e semitransparente que os cobria, em uma sinistra harmonia, ergueram suas cabeças, penso, e todos aqueles quatorze olhos se fixaram nos meus e, num piscar, penso, tudo se transformou mais uma vez, agora eu as via nuas, esquartejadas, penduradas, amarradas e pregadas em troncos de árvores secas, mais uma vez, penso, a riqueza de detalhes era avassaladora, penso, consigo evocar a visão da pele extremamente branca e pálida, dos hematomas, da carne exposta, sangue por toda parte, membros dilacerados, e o fedor de sangue e podridão que impregnava o ar e, logo atrás delas, um vulto sombrio observava tudo, me arrisco a dizer que era a Morte, penso, assim como esse ser tenebroso, como um regente do pânico, que a coisa horrenda segurava uma foice, ‘Mort-vivant, pourquoi ne retournes-tu pas au cimetière, sur ta tombe?’, disse o Ceifador apontando sua foice para um túmulo e na lápide meu nome reluzia, é, penso, sempre diziam que quando eu tinha nove anos, caí da bicicleta e bati a cabeça numa pedra, penso, a bicicleta era branca e papai decidira ser hora de tirar as rodinhas laterais dela, penso, ele equilibrou a bicicleta comigo montado nela e do meu lado, apoiando uma de suas mãozonas em minhas costas, penso, ‘N'aie pas peur, mon petit’, ele disse, apalpando com sua outra mão a minha'zinha suada que segurava firme na manopla do guidão, penso, me ajudou a tomar embalo até que não deu mais conta de correr na mesma velocidade — essa é uma das primeiras vezes que nunca me esqueço, penso, pedalei como se minha vida dependesse daquilo, foi difícil parar a bicicleta, mas consegui sem cair, e por muitos dias papai teve que me ajudar, eu só conseguia manter o equilíbrio se ela tivesse a mil, penso, quando papai não estava para me ajudar, eu procurava um trecho íngreme para nela montar, ou tentava sozinho mesmo numa baixada, penso, foi num dia desses que, tentando equilibrar, penso, não consegui evitar o pior, penso, a baita cicatriz que meu cabelo esconde seria a prova disso, sempre diziam que a ganhei quando nesse dia cai feio de uma ribanceira, penso, barranceira, mamãe corruptelaria; ‘aquele é o túmulo do meu irmão, quando nasci ele não estava mais aqui, me deram o nome dele!’, gritei para os gargalhantes pirralhos quando eu tinha oito anos, penso, e, ao mesmo tempo, grito para a Morte quando eu tinha vinte e dois anos enquanto eu arrancava da minha cabeça a unidade externa da minha prótese auditiva, penso, o implante então não recebia mais sinais, deveria haver silêncio, mas, estranhamente, eu ainda ouvia, ‘Mort-vivant, pourquoi ne retournes-tu pas au cimetière, sur ta tombe?’, tomo posse de um machado, entro no jardim alheio e vou em direção à lápide, acerto uma pancada nela, era dura, penso, acerto mais uma machadada, penso, por que essas coisas são tão pesadas?, mais uma e um certo estrago se torna visível, ergo o machado ao céu, o avanço com todas as forças e sinto não apenas a natureza escorregadia das minhas mãos, mas também o gramado molhado do cemitério sob meus pés, penso, o machado voa, ricocheteia na lápide antes de cair no chão, o mundo parece inclinar-se com meu corpo quando titubeio, e no instante seguinte, percebo o fio da lâmina voltada para cima, à espera; luto para manter o equilíbrio, mas deslizo novamente, rodopio e uma noite estrelada, enquanto a gravidade abocanhava minhas costas rápido demais, foi a última coisa que vi antes do (pela primeira vez, penso, mesmo que temporariamente, entendi e me senti parte de um grande todo do qual somos inseparáveis, penso, compreendi que a ideia da distinção homem versus natureza não fazia sentido algum, penso, o gramado do cemitério e o do jardim laçam meus membros, estou atado ao solo, penso, sou onipotente, é sem começo, meio e fim, penso, o Universo sempre existiu e sempre existirá, pensei, penso, todo o conhecimento estava em minhas mãos, penso, se eu quero, eu posso, assim, mesmo tendo consciência de que seria impossível observar o Universo de fora, pois por definição ele é tudo o que existe, penso, tudo está contido nele, eu realizei o feito, penso sobre o pensar, e logo, penso, pensarei sobre o que pensei sobre o pensar, penso, não somos um acidente cósmico, cedo demais nos encontrarão, quer que eu te conte o que acontecerá com as religiões?, penso), aos meus pais, penso, sei como as batidas de seus corações ecoam, cada vez mais rápidas à medida que vocês se aproximaram do meu corpo naquele cemitério ou, penso em você, Remi, que naquele jardim, também segurara delicadamente no meu rosto tão gelado, penso, sei como é girá-lo com tanta facilidade e perceber que talvez seja tarde demais — então, só o silêncio, penso e, ainda perdido neste lugar entre a vida e a morte, acordo num sombrio quarto branco de hospital, tento ler os lábios do enfermeiro que fala comigo, ele percebe que não compreendo, e pergunto, ‘Où suis-je?’, e percebo que ele não entende, ele faz um sinal que decifro como aguarde, penso, depois de um tempo Remi aparece, sorri e na língua de sinais francesa, pergunta como estou, sinalizo que ‘minha cabeça dói’ e pergunto sobre o paradeiro do meu aparelho auditivo, penso, ‘você quebrou ele’, ele sinaliza; ‘o que aconteceu?’, sinalizo, e ele abre a mão dominante e a posiciona com a palma para baixo, em direção ao corpo e a movimenta para baixo rapidamente, como se estivesse empurrando algo, sugerindo uma ideia de ‘excesso ou demasiado’, penso, em seguida, combinou com outro sinal num movimento que imitava a ideia de ‘ingerir ou aplicar algo’, penso, é, penso, faz sete anos isso, sete anos de consequência, te escrevo isso, Remi, daqui da costa sul francesa, e é besteira, penso, sei que você já sabe, meu amor, penso, talvez se eu soubesse que Van Gogh recebeu o mesmo nome de seu falecido irmão, irmão, eu iria me gabar ao invés de tentar destruir sua lápide, penso, gostaria que ele retornasse aqui para repintar Paysage marin aux Saintes-Maries, penso, fazendo dos meus sentimentos as cores necessárias, pois, assim como cor de peixe cavala eles são, penso, assim como o Mar Mediterrâneo, você nem sempre saberá se é verde ou roxo, nem sempre saberá se é azul, porque no próximo momento o brilho em constante mudança assumiu uma tonalidade rosa ou cinza, penso”, penso, não era nada disso que eu queria assentar, mas é assim que penso, é isso, sinto, que sinto, o que isso é, sou também, penso, não consigo deixar de pensar, penso, é como aqueles sonhos meio lúcidos que penso que neles consigo ler, mas o que está escrito é confuso, penso, e aquele cavaleiro segurando o machado?, penso, talvez ele nunca terminou de atravessar o rio, às vezes desequilibrou, penso, droga, o vento!, vou colocar esse punhado de conchas sobre a carta para que não a leve, penso, com o peso de sua armadura ele foi direto para a profundeza quando caiu, penso ao olhar para o mar, é sobre o pensar que penso, e logo, penso, pensarei sobre o que pensei sobre o pensar, penso, meu quadro é confuso, penso, pois como cor de peixe cavala o escrevi; “como cor de peixe cavala”, por fim, escrevi…
