O cheiro de café torrado e o de canela são os meus favoritos, porque me faz lembrar dele, de nós; de dias em que todos os dias eram bons. No copo, que uma vez foi de extrato de tomate, misturávamos água com detergente e açúcar, e soprávamos bolhas de sabão com os talos das folhas do mamoeiro. A picape alaranjada ia buscar os balaios de café, e a gente pegava carona na carroceria, mergulhados nos grãos gelados e melados. Lembra das estrelinhas douradas de glitter que você colava com tanto cuidado nas nossas bochechas? Era tão divertido, ele na garupa da minha Monark verde; só nós dois e meu desejo de pedalar até em casa, então, aos onze anos, tão veloz quanto um carrinho de rolimã descendo uma ladeira, algo aconteceu —

— Tá acordado, Timéo? — cochichou Luca na penumbra da noite.
— Estou — respondeu, virando-se para ele.
— O que tá acontecendo, não consegue dormir?
— Tô preocupado com amanhã. Acha que vamos ficar na mesma sala de aula?
— Se a gente não ficar, tenho certeza que a mamãe vai dá um jeito.

Na terceira semana de aula, durante o recreio, um grupo de alunos se aproximou:— Você é o Luca, né? — perguntou uma garota.
Ele assentiu.
— Posso fazer uma pergunta? — continuou ela, hesitante.
— Pode.
— Vocês… — ela trocou olhares com o grupo dela — são um casal?
— Não — respondeu Luca.
Timéo sorriu para os desconhecidos, enquanto Luca reforçou:
— Não somos um casal.
— É só que 'cês tão sempre grudadinhos — comentou outro aluno, com um sorriso malicioso.
— É, mas não somos um casal — insistiu Luca.
O grupo riu. ‘Não me surpreenderia se dormissem na mesma cama’, alguém comentou. Mais risadas.
— Por que tão dizendo isso? — Luca questionou, irritado.
— Porque tá bem na cara! Vocês são namoradinhos…
— Somos irmãos — Luca explicou.
— Que tipo de irmãos faz isso? — provocou um dos garotos.
— Acho que é algo além disso — uma curiosa interviu.
O grupo riu novamente, enquanto Timéo, acanhado, apenas desviava o olhar.
— Ué, parece que o gato comeu a língua dele.
— Vocês podem parar? Deixa ele em paz — disse Luca, firme. — Somos irmãos, não um casal!
— Tem certeza? Minha tia disse que não são irmãos de verdade.
— Temos certeza, sim! — Luca respondeu, encerrando a conversa.

Depois que isso aconteceu, as coisas saíram dos trilhos porque a ingenuidade do Luca foi ferida, e alguns anos depois —

Surrando:
— Tim — Luca bateu na porta do quarto, — posso entrar?
— Claro.
— Tá melhor?
— Minha cabeça ainda tá doendo um pouco — respondeu Timéo.
— Tenho certeza que logo vai ficar melhor.
Luca se acomodou ao lado de Timéo na cama, tentando animá-lo com uma conversa leve. O bate-papo foi se alongando até que, sem perceberem, o cansaço os venceu. Horas depois, Timéo foi despertando lentamente, sentindo a respiração suave de Luca em sua nuca e algo crescendo… Com cuidado, desenroscou-se da nostálgica conchinha, tentando não acordar o irmão. Na ponta dos pés, deixou o quarto e foi até o banheiro, onde trancou a porta atrás de si. Temia ser descoberto. No entanto, cada batida do seu coração soava como uma acusação, um açoite doloroso de autorrejeição que fez sua ereção psicogênica se atenuar. Ao sair do banheiro, cuidou para não fazer nenhum ruído enquanto se calçava e vestia um agasalho para enfrentar o frio lá fora… Seu peito apertava, a respiração curta e descompassada, enquanto pedalava pela escuridão da noite. Antes do amanhecer, já não sabiam onde ele estava.

As pessoas estranhavam: como um homem e uma mulher podiam ser tão próximos sem qualquer envolvimento romântico? ‘Sempre em aventuras, seu pai. Um dia, ele apareceu com você no colo’, você costumava me contar, mãe. Quando eu tinha oito anos, meu pai desapareceu. O Luca e eu, por conta da amizade de vocês, nos tornamos inseparáveis. O Luca embirrou, quis mudar para a mesma escola que eu. Um dia, com pureza e amor, o pequenito perguntou: ‘Mamãe, posso ter um irmãozinho?’ Foi assim que ganhei uma família.

— Tim, come um pouco — disse sua mãe, Amélie.
Ele continuou apenas a olhar para o prato.
— Timéo? — ela insistiu.
— Não tô com fome, mãe.
— Só um pouquinho, por favor, meu amor.
Luca, do outro lado da mesa, observava em silêncio, os olhos marejados.
— Não consigo — disse Timéo, começando a chorar.
Amélie o abraçou:
— Não precisa guardar tudo pra si, meu bem. Fale comigo ou com seu irmão. Tintim-por-tintim. Daremos um jeito, ou a gente foge juntinhos mesmo, pra onde você quiser… mas sempre juntos, tá bom? Somos uma família.
Timéo assentiu, ainda chorando.
— Vou fazer um chocolate quente pra você, tá? Do jeitinho especial da mamãe. Seu favorito, né?
— Isso ele nunca disse — interviu Luca. — É o meu que ele prefere, mamãe. Deixa que eu faço.
— Que audácia desse menino! — Amélie riu. — Mas tudo bem, preciso dar uma saidinha mesmo…
Timéo, secando as lágrimas, sorriu.


— Ding-dong — imitou Luca, entrando no quarto do irmão. — Onde é que pediram o-melhor-chocolate-quente-do-mundo-para-a-melhor-pessoa-do-mundo?
Ele segurava duas canecas. O aroma de chocolate, baunilha, cravo e o perfume inconfundível da canela na caneca de Luca encheram o quarto, combinados com o ingrediente secreto que fazia daquele o melhor chocolate quente.
Timéo levantou o dedo:
— Bem aqui, garçom — disse, sorrindo.
Sentaram-se na cama, dividindo o calor do cobertor.
— 'Brigado — disse Timéo.
— De nada — sorriu Luca. — Sabe, você ficou quase dois dias sumido e, depois que voltou… mais uns oito praticamente sem conversar comigo… sinto sua falta, seu pestinha.
— Desculpa — murmurou Timéo, cabisbaixo.
— O que a mamãe disse é verdade, você pode sempre contar com a gente e contar pra gente, ok?
Ele assentiu.
— Como foi sua última noite? — perguntou Luca.
— Foi… um pouco estranha.
— Por que?
— Eu… sonhei como você.
Timéo saboreou um pouquinho da bebida e:
— Realmente o melhor chocolate quente de todos — avaliou.
— Obrigado — Luca sorriu —, e com o que sonhou?
Timéo emudeceu perante a pergunta e o vapor que dispersava do chocolate quente. Coisas sobre as quais quero conversar, mas é melhor eu esquecer…, ele pensou, ao mesmo tempo que descobriu que não foi apenas um pensamento. Tarde demais, ponderou e —
— …, ou talvez não — em outro pensamento audível, divergiu-se.
O transbordar das emoções deixava um rastro silencioso nas suas bochechas, e quando o sabor salgado das lágrimas alcançou os seus lábios, deixou as palavras escaparem:
— Eu era você. Era muito real. Estávamos de volta aos onze anos… lembra, do primeiro ano do fundamental?
Luca fez um gesto positivo.
— Sempre achei que foi fácil pra você, Luca — continuou Timéo, com a voz trêmula. — Que não se importava em se afastar de mim por causa do que diziam da gente. Demorei a entender a maldade das pessoas. Pra mim, nunca importou o que falavam; eu nunca vi a gente como eles viam.

Nesse sonho, eu via o mundo pelos seus olhos, sentia suas emoções e pensamentos. Descobri o quanto sofreu ao se distanciar de mim. Com o tempo, a gente amadurece, e eu tento fugir disso. Reluto em aceitar que meus sentimentos por você mudaram. Talvez você pense diferente, mas acredito que isso não altera a pureza do que sentimos na infância — aquele amor de admiração e proximidade era genuinamente inocente. O que sinto hoje por você, e me perdoe por isso, inclui um desejo que não escolhi. Bem, acho que você já entendeu que eu…

Como se a melodia de “Cinnamon Girl” de Lana Del Rey tocasse suavemente ao fundo, de repente as palavras se tornaram desnecessárias.

* * *

Amélie, lamento se isso te decepcionar, mas o Luca e eu somos, sim, mais que apenas irmãos.

©   •  Timothée Zendi
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